SÃO PAULO, SP (FOLHAPRESS) – Nos anos 1990, sinônimo de diversão em São Paulo era botar uma roupa bonita, ligar para os amigos e sair para dançar numa boate eletrônica. Duas décadas mais tarde, a excitação pelas aventuras que a noite proporciona não mudou, mas a forma como o público vive as festas, sim.

Saem de cena os clubes fechados com fumaça de cigarro e entram as baladas na rua, num primeiro momento, que depois migram para galpões e prédios abandonados.

No meio disso, a lei antifumo passou a confinar os baladeiros num chiqueirinho fora da pista de dança, e o techno e a house de ontem -tocados majoritariamente por pessoas brancas abastadas- agora disputam as caixas de som com a música eletrônica genuinamente brasileira. Os DJs animam o público com o funk feito por jovens das periferias das grandes cidades e o tecnobrega do Pará.

Este corte radical com o passado é o objeto da versão atualizada do livro “Babado Forte”, da jornalista e curadora Erika Palomino, que chega às prateleiras no próximo dia 30. Quem já passou dos 40 anos lembra com carinho da primeira edição, lançada em 1999, que cobria a emergência da cena clubber em São Paulo e no Rio de Janeiro e a explosão da música eletrônica para dançar no país, em textos surgidos a partir da coluna “Noite Ilustrada”, que Palomino assinava na Folha de S.Paulo.

Mas o “Babado Forte” de 2024, embora mantenha parte considerável do texto original, vai muito além do olhar e das vivências de Palomino na noite eletrônica, na moda e na conexão das duas áreas. Cerca de 70% do conteúdo do livro novo é original, ela diz, produzido com a colaboração de 17 pessoas de diferentes áreas e estados do Brasil, “para que essa sinfonia fosse a mais plural e multifacetada”, acrescenta.

No primeiro livro, afirma Palomino, está retratada uma fase em que “a gente absorveu muito as influências estrangeiras, achava tudo o que acontecia em Londres o máximo, o techno de Berlim incrível, a gente estava muito deslumbrado com isso”.

Mas a virada para o século 21, turbinada pela popularização da internet, fez os jovens valorizarem o Brasil. “As gerações que começaram a produzir começaram a ter vontade de reagir a tudo aquilo de uma forma que pudesse ser mais local, com a nossa cara. Um processo bastante antropofágico.”

Neste contexto surgem, por exemplo, manifestações ricas culturalmente, como a cultura do bate cabelo das drags, uma invenção do ícone da noite paulistana Márcia Pantera, a cena do ballroom em Salvador, impulsionada pelo coletivo de jovens negros LGBTQIA+ Afrobapho, e a festa Batekoo, também criada na capital baiana, produzida por e para o público preto e que estourou e agora acontece em várias cidades do país. Todas estas iniciativas são abordadas em textos específicos no livro.

Outros capítulos da publicação documentam a efervescência da rua Augusta, em São Paulo, na primeira década deste século, um momento da vida noturna da cidade que precisava mesmo ser escrito. Para alegria dos saudosistas, estão lá uma entrevista com Facundo Guerra sobre seu ex-clube, o Vegas, um dos mais legais que a cidade já teve, e a história do Bar do Netão, um pequeno boteco onde as pessoas ficavam na rua e no qual foram gestadas as festas que mudariam a noite paulistana nos anos 2010.

Tomar as ruas de uma cidade que vive dentro do carro era uma atitude festiva e política, a um só tempo, um gesto de cidadania. Neste sentido, um dos méritos da obra é dar os contextos sociais e de governo e mostrar como a administração de uma capital pode melar o rolê. Ficamos sabendo, na seção dedicada ao Rio de Janeiro, que a boate 00 fechou porque na gestão do prefeito Marcelo Crivella, bispo da Igreja Universal, não houve licitação para a ocupação do Planetário da Gávea, espaço que abrigava o clube, vencedor dos editais nos anos anteriores.

“O livro sai agora não por acaso. Ele pretende continuar uma ideia de resistência, de inspiração, de reação a qualquer tipo de retrocesso”, diz Palomino, acrescentando que há diversos momentos de viés politizado no texto, mesmo que não sejam a tônica da narrativa. “É um incentivo a liberdades individuais e coletivas, ao fazer diferente, a novas formas de existir. Como no início dos anos 1990, quando existia uma reação escapista [do público das festas] àquela dinâmica social que a gente vivia, de uma inflação de 80%.”

Questionada se acredita que a ascensão dos governos conservadores no Brasil afetou a noite, ela afirma que, ao mesmo tempo, há uma onda de pessoas que se unem para se contrapor a este cenário. “O livro fala muito da amizade como forma de ativismo. O ambiente da pista de dança também serve como uma utopia. Em momentos de bastante repressão as pessoas se encontram na pista para fortalecerem seus elos. Essa onda reacionária não nos assusta. O conservadorismo nos fortalece.”

Na parte final do livro, dedicada à moda, a autora trata de marcas e estilistas independentes, alguns dos quais muito ligados à vida noturna, como Walério Araújo e a performer Rato Distópico, que desfilou uma coleção na Casa de Criadores, celeiro de novos talentos. Palomino também se aprofunda no trabalho de Vicenta Perrota, do Ateliê Transmoras, estilista que viaja o Brasil dando oficinas de costura para transexuais e travestis e que acaba de levar suas produções, feitas a partir de sobras de tecido, para mostrar em capitais da Europa.

Se o cruzamento de fashionismo e boatismo segue em alta, há uma diferença no que se vestia nos anos 1990 e em como nos apresentamos para o mundo hoje. “Aquela moda clubber era um pouco mais lúdica, tinha recortes dos anos 1960, tinha mais uma ideia de diversão”, afirma Palomino. “O que a gente tem agora é um recorte talvez um pouco mais apocalíptico.”

BABADO FORTE – 35 ANOS DE CULTURA JOVEM NO BRASIL

Quando Sessão de autógrafos dia 23 de novembro, sábado, a partir das 15h

Onde Biblioteca Mário de Andrade – r. da Consolação, 94, São Paulo

Preço R$ 169,90 (464 págs.)

Autoria Erika Palomino

Editora Ubu

Link https://www.ubueditora.com.br/babado-forte.html