PARATY, RJ (FOLHAPRESS) – A Flip, que neste ano homenageia o cronista João do Rio, também celebrou o centenário de James Baldwin na mesa que encerrou o segundo dia. Em uma conversa mediada por Juliana Borges, os autores Robert Jones Jr. e Evandro Cruz Silva falaram sobre como a territorialidade, a música e a religião atravessam a vivência negra.

As ruas que aparecem na obra de João do Rio se personificam nas “plantations” -sistema de produção agrícola implantado por europeus em regiões colonizadas- em “Os Profetas”, de Jones, Jr. De acordo com ele, a obra é uma história de amor, memória, reconhecimento e história.

“Eu visitei uma antiga ‘plantation’ e era linda, com fauna e flora deslumbrantes. Se não soubéssemos a história, não saberíamos que esse foi um lugar de dificuldades para o povo negro. Eu queria capturar isso, de ser um lindo, mas também carregar uma tristeza horrível”, disse.

O escritor contou ter escolhido esse espaço por entender que nele as pessoas eram forçadas a trabalhar, mas eram livres para descobrirem formas de amor -não como nas comédias românticas, e sim mais próximo do que escreveu bell hooks em “Tudo sobre o Amor”, que se mostra em ações e precisa ser reaprendido.

“No livro, a palavra não falada é ‘amor’. A escravidão era tanta, que ele não podia dizer que a amava. Você tem um filho, e então aos dois anos o levam embora. Mas eles o amam. Há um legado disso nos dias atuais. Foram séculos de crise, porque não reconhecemos e não consertamos essa vivência”, afirmou.

Já em “O Embranquecimento”, são as ruas da capital paulista e do litoral de Santos (SP) que ganham vida. “É quase impossível se deslocar de classe sem se deslocar de território. E esse deslocamento territorial te transforma -tanto quando você está lá, quanto quando você volta”, afirmou.

Para ele, o acesso à educação e à universidade gera uma transição intelectual dos sujeitos. “As políticas afirmativas produzem a progressão social de indivíduos que raramente conseguem carregar a família junto. Eles se tornam um motivo de orgulho, mas também de desencaixe. Muitas famílias brasileiras que têm filhos cotistas se orgulham de algo que eles não entendem, e isso traz uma sensação arrebatadora”, falou.

Outro aspecto que une as obras é a religiosidade. Capaz de moldar comportamentos, culturas e cosmovisões, ela aparece em diferentes momentos nos livros. De acordo com Silva, a fé também pode ser usada como forma de diferenciação social e econômica.

Religiões de matriz africana, por exemplo, professadas pelos negros escravizados, foram demonizadas durante o processo de colonização e tornaram-se alvos de preconceito e violência até os dias atuais.

“Você não precisa ver um terreno pegando fogo para entender o que é a violência contra religiões de matriz africana. A religião é um espaço de disputa muito forte no tecido brasileiro. Você performa certas religiosidades dependendo de quem é na fila do pão. A gente se orgulha de abandonar certas religiosidades e chama isso de ascensão social”, afirmou, e disse observar isso na própria família, na qual uma avó é macumbeira, sua mãe é evangélica e ele, ateu.

Já para Jones Jr., a relação dos negros americanos com a religião é mais complexa. Ele chegou a se questionar por que os Estados Unidos, outrora colônia europeia, têm como base a filosofia cristã, de seus colonizadores.

De acordo com ele, muitos adotaram as práticas cristãs porque foram obrigados, mas outros as ressignificaram e tomaram a si. Ele citou como exemplo o louvor, momento de cânticos, de diferentes igrejas. É possível perceber quando trata-se de um louvor tipicamente branco ou se tem influência negra. “Tem dança, sapateado no chão, é diferente”, brincou.

Por outro lado, ele diz que o propósito do cristianismo era roubar identidades. “Eles nos deram nomes cristãos para que nos esquecêssemos quem éramos e praticássemos a religião deles”. Por isso, ao decidir escrever sobre a escravidão, também decidiu mostrar que a homofobia, a transfobia e outros preconceitos são dos europeus, disse.

“Eles fizeram por uma razão: precisava que procriássemos, porque precisavam de mais escravos”, afirmou.

Ciente dessas armadilhas, o escritor disse se atentar à forma como relata a vivência negra. “Eu tenho que ser cuidadoso para não fazer o que pode fazer o sofrimento negro ser pornográfico, um tipo de fetiche pras pessoas”, disse. Ele citou a morte de George Floyd, assassinado pela polícia em frente às câmeras, e o movimento de inclusão de pessoas negras nos mercados que sucederam o movimento “Black Lives Matter”.

“Eles já esqueceram. Essas coisas são moda. Eu não quero nada disso. Quero ser um escritor negro que fala do amor, do sofrimento, da vida das pessoas de quem eu venho.” Evandro, que também é sociólogo e pesquisador, disse que em sua arte tem o propósito de gerar reflexões, sem o compromisso de responder às perguntas.