PARATY, RJ (FOLHAPRESS) – Um grande livro pode começar com uma notícia insólita. “A Vida Secreta das Emoções”, que juntou a filósofa italiana Ilaria Gaspari e a escritora mineira Marcela Dantés nesta quinta (10), na Flip, tratou de narrativas que mergulham em psiques pouco dadas a obviedades.

E o ponto de partida pode estar nos jornais. “Livros nascem das nossas obsessões”, disse Dantés antes de contar como criou o enredo de “Nem Sinal de Asas”, da editora Patuá. Ela leu uma reportagem no espanhol El País sobre uma idosa que morreu.

Só acharam seu corpo cinco anos depois, em seu apartamento. Aconteceu porque a conta de luz, paga no débito automático, deixou de ser quitada. O dinheiro na conta da falecida havia acabado, e a empresa de energia foi entender o porquê.

“Lembro de ler e ficar completamente obcecada: que caminhos uma pessoa percorre para chegar nessa solidão absoluta?”

Seu “Vento Vazio”, da Companhia das Letras, também bebeu do noticiário. Para essa, Dantés leu sobre duas senhorinhas em Maceió que passaram oito anos cavando com uma colher. A autora não esquece da imagem. “Como se fosse uma piscina, e a casa brotando no meio.”

A justificativa de por que fizeram isso, afirmou, “já entra na ordem da ficção”. “Estou aberta a notícias esquisitas, por favor”, ela incentivou a plateia lotada no auditório principal da festa literária. “A mão da escritora já começa a coçar.”

O último livro de Gaspari, “A Reputação”, que saiu pela Âyine, empresta um pouco de sua experiência trabalhando num showroom da Valentino, grife de luxo italiana. Ela estudava filosofia na época, assim como uma personagem do título.

A italiana tem uma pegada pop, como em “Lições de Felicidade”, da mesma editora, em que recorre à Grécia Antiga e suas escolas filosóficas, do estoicismo ao cinismo, para propor formas de lidar com dores mundanas, como o fim de um relacionamento.

Mediadora da mesa e também escritora, Natalia Timerman apontou distâncias no livro mais recente das duas –uma história gelada pelo ar-condicionado de uma butique, a outra cortada por um vento árido que sopra numa serra mineira.

Mas viu pontos de convergência. Uma personagem fabulada por Gaspari esfregava suco de limão para clarear manchas da pele “e esconder do mundo que envelhecia”, reparou Timerman. Já em “Vento Vazio” há a mãe que queima a pele da filha bebê com limão para tentar clarear a pele dela. A cicatriz ajudará a definir sua história de vida.

Dantés disse gostar de personagens contraditórios, “às vezes estranhos, improváveis”, e evocou a portuguesa Matilde Campilho. “Ela falou que a literatura pode não salvar o mundo, mas o minuto. Acredito nessa transformação.”

Para a mineira, é preciso “usar a literatura para ter um olhar mais gentil para a gente e para o outro, para nossa complexidade e nossas contradições”.

Daí ter deixado o mundo da publicidade, de onde vem. “Apesar de ser tido como lugar criativo, é cheio de regras. Cabem 13 palavras no outdoor ou 30 segundos para passar a mensagem de como aquela é a melhor empresa do mundo.”

Ilaria disse tirar sua força de suas fraquezas. “Se eu fosse mais feliz, não teria necessidade dessa busca de felicidade.”

A última pergunta foi justamente sobre como saber o momento de dar o ponto final a uma história. O desfecho vem no sonho para Gaspari, autora de “A Vida Secreta das Emoções”, da Âyiné, homônimo ao nome da mesa.

“Uma história acaba quando você começa a sonhar com ela”, disse num italiano ligeiro, compatível com uma personalidade que ela própria descreve como neurótica. “Chego ao final do livro quando começo a sonhar com ele. Sinto uma distância entre mim e o sonho.”

Dantés ofereceu “uma visão mais pragmática” como resposta. “Acaba quando o editor falar que tenho que mandar o livro, caso contrário eu seguiria com ele.”