LISBOA, PORTUGAL (FOLHAPRESS) – Se sua nave espacial está ameaçada por alienígenas, comande com ordens claras sua frota de robôs. O jogo Vórtex, elaborado para para a assistente de voz Alexa, é o maior sucesso da empresa Doppio, fundada pelo brasileiro Jeferson Valadares em 2018 em Portugal. Valadares tem mais de duas décadas de experiência na indústria dos games, já morou na Inglaterra, na Finlândia e no Vale do Silício —mas, na hora de abrir sua própria empresa, escolheu Lisboa. Por quê?

“Cogitei Londres, Paris, Estocolmo, Helsinki e Barcelona, Portugal estava fora do meu radar num primeiro momento”, diz Valadares. “Acho que fiz a escolha certa”. A Doppio acabou sendo vendida em 2021 para a americana Fortis, uma espécie de incorporadora de startups de games.

Valadares seguiu à frente da área de criação e hoje comanda um exército não de robôs, mas de desenvolvedores especializados em jogos altamente ambiciosos. Ele tem cerca de 400 funcionários trabalhando para ele, espalhados por meia dúzia de países.

Hoje a sede da Fortis se situa num recém-criado hub de jogos digitais, no bairro do Saldanha, próximo ao centro da cidade. A nova estratégia da cidade de Lisboa para se tornar um polo tecnológico é criar hubs temáticos, que reúnem empresas com a mesma vocação com o intuito de facilitar o intercâmbio de inovações e oportunidades de financiamento. Para o próximo mês de novembro está prevista a abertura de um hub de inteligência artificial no Alvalade, bairro da região norte próximo ao campus da Universidade de Lisboa.

Esses hubs são uma expansão da Unicorn Factory, incubadora com capital público e privado que ocupa um galpão no bairro hipster do Beato, às margens do rio Tejo. A Unicorn Factory hoje incuba 400 empresas, e pelo menos 50 delas têm alguma ligação com o Brasil. Os profissionais brasileiros, como Valadares, participam ativamente da movida tecnológica de Lisboa. Recentemente a Unicorn Factory criou mentorias específicas para startups brasileiras que desejavam se expandir para a Europa a partir de Portugal.

Um levantamento feito neste ano pela European Startup Initiative, centro de estudos que cruza dados sobre economia digital nos 27 países da União Europeia, aponta Lisboa como a sexta melhor cidade do continente para abrir uma startup —atrás de Londres, Berlim, Barcelona, Amsterdam e Paris, mas à frente de centros como Munique, Milão, Bruxelas, Estocolmo e Zurique, todos em países mais ricos que Portugal.

Lisboa começa a se tornar um polo de tecnologia por uma combinação entre características locais e incentivos governamentais. O marco inicial se deu em 2016, quando a cidade passou a sediar o maior evento de tecnologia digital da Europa, o Web Summit. A prefeitura investe 11 milhões de euros anuais, perto de R$ 70 milhões, para ter o direito de organizar o festival, que anteriormente ocorria em Dublin, capital da Irlanda. O passo seguinte foi a criação da Startup Lisboa, mais tarde rebatizada como Unicorn Factory.

Para o português Gil Azevedo, diretor executivo da Unicorn Factory, a transformação de Lisboa em capital tecnológica se dá um pouco como um game —em fases. “A cidade já atrai muitas empresas que estão começando e investidores de pequenos tickets”, diz Azevedo, que antes de abraçar o projeto da Unicorn Factory fez carreira no mundo árabe na área de finanças. “Para sermos um ecossistema amadurecido, como os de Londres e Berlim, falta atrair os grandes investidores, que permitem que as empresas ganhem escala”.

Para o brasileiro Valadares, Lisboa está no caminho certo para dar este salto. “O ambiente aqui lembra o de Helsinki anos atrás, onde trabalhei. Hoje a Finlândia tem grandes empresas de games, como a Rovio, criadora do jogo Angry Birds”. No estudo da European Startup Initiative, Helsinki aparece à frente de Lisboa no ranking de cidades onde há mais chances de aparecer um unicórnio, ou seja, uma empresa de tecnologia avaliada em mais de US$ 1 bilhão. Já passou para a “fase 2” do game —aquela em que as “startups” se transformam em “scaleups”.

Na competição entre as cidades europeias Lisboa tem algumas vantagens. “Uma das mais importantes é o talento”, diz Gil Azevedo. Segundo ele, há muitas e boas faculdades de engenharia e tecnologia na cidade. Há também um ambiente multicultural, que congrega jovens do norte da Europa, da Ásia e da África nos mesmos festivais de rock e bares de cerveja artesanal. Em Portugal eles são chamados de “nômadas digitais” e se beneficiam de um visto especial para trabalhar, o “startup visa”.

Valadares vê outros atrativos. “Os profissionais de tecnologia saem da faculdade falando inglês fluentemente, o que nem sempre ocorre em outros países europeus. Portugal fica numa localização privilegiada, com voos diretos para as maiores capitais da Europa e para as principais cidades americanas, como San Francisco”, diz. “Fica no meio do caminho entre vários polos tecnológicos do mundo.”

Lisboa se beneficia do fenômeno conhecido como “nearsourcing”, em que empresas globalizadas preferem contratar profissionais perto da sede. Assim fica mais fácil convocá-los para reuniões presenciais, e os contatos por zoom se dão em fusos horários amigáveis. Alguns gigantes europeus —caso da francesa Airbus, da área de aeronáutica— transferiram departamentos inteiros na área de tecnologia para Portugal. Tudo isso é também fruto de um mundo pós-pandemia, que normalizou o trabalho remoto.

Para passar à fase seguinte do videogame Lisboa precisa superar algumas limitações. Faltam profissionais “sêniors” para ocupar cargos de chefia. Eles precisam ser trazidos de mercados mais amadurecidos – no caso dos games, Estados Unidos, Japão, China e Reino Unido. Outra limitação é o tamanho. Portugal é um país pequeno, e abrir um negócio de larga escala no país só faz sentido se for para conseguir acesso ao mercado europeu.

“Há em Portugal muito capital disponível, público e privado, para a primeira rodada de uma startup”, diz o português Euclides Major, professor da Nova School of Business and Economics, uma das principais faculdades europeias na área de negócios. “O que não temos ainda é a abundância de investimento para que empresas cresçam, tanto que as startups portuguesas acabam sendo vendidos para gigantes americanos ou chineses”.

Trata-se de um problema não apenas português, mas europeu. “Um terço das startups tecnológicas que surgem no mundo aparecem na Europa, o que mostra que existe talento e criatividade no continente”, diz Major. “Entre as que ganham escala, no entanto, apenas 10% estão no continente”.

Mesmo assim, Major vê uma evolução significativa no ecossistema português. “A burocracia na área diminuiu, hoje é muito fácil abrir uma empresa em Portugal. O ambiente de startups é relativamente pequeno, o que facilita interações entre os diversos atores da cena – por exemplo, entre criadores e investidores. Existe também bastante dinheiro europeu para a área de pesquisa e desenvolvimento, que acaba canalizado para esta área”.

Para Portugal, tornar-se um polo de tecnologia digital é condição de sobrevivência. Estima-se que 30% dos jovens que saem das universidades emigrem para centros europeus que pagam melhores salários. “Em contrapartida, as remunerações na área de tecnologia estão praticamente em linha com outros países europeus”, diz Valadares. “A indústria de games cria um emprego ao mesmo tempo rentável e atrativo. A maior parte dos jovens prefere criar jogos que trabalhar em banco.”