RIO DE JANEIRO, RJ (FOLHAPRESS) – João do Rio viveu uma época —as primeiras duas décadas do século 20 no Rio de Janeiro— ideal para um cronista flâneur. Foi testemunha ocular de avenidas que se abriam e de ruas que desapareciam, de aterros de praias e arrasamentos de morros, no maior e mais cruel espetáculo de transformação da cidade.

A República recém-implantada decidiu fazer do Rio a capital da ordem e progresso, gastando o que fosse preciso.

O governo Rodrigues Alves havia se beneficiado da administração anterior, de Campos Salles, que saneou as finanças do país. Para tocar a empreitada, o nome foi o de Pereira Passos, que assumiu a prefeitura próximo dos 70 anos para fazer a reforma inspirada no modelo parisiense do barão Haussmann.

Sumiram a golpes de picaretas quase 600 prédios antigos, entre cortiços e alojamentos. Era a demolição de parte da cidade ainda colonial para construir o cenário da modernidade, “a vitória da higiene, do bom gosto e da arte”, como anotou um entusiasmado Olavo Bilac.

Cultor das máscaras e dos pseudônimos, cheio de contradições, João do Rio não se posicionou contra a abertura da avenida Central. A conferência que abre seu livro mais famoso, “A Alma Encantadora das Ruas”, foi escrita para saudar a atual avenida Rio Branco.

No entanto, em outra conferência, “O Figurino”, ele lamenta “a fúria imitativa, a macaquice universal, a doença da exterioridade”. Uma opinião no mínimo curiosa para quem tinha como paradigma literário o dândi Oscar Wilde, de quem copiava a maneira de vestir.

O interesse do cronista não estava só no Rio que virava a “frívola city”. Aquela cidade que desaparecia no bota-abaixo era tão ou mais importante para ele. Condenou seu apagamento e se apressou em descrevê-la: a Saúde e os cantores de modinha, a rua do Lavradio e os cabarés populares, a rua da Alfândega e os tatuadores, a ladeira da Misericórdia e os comedores de ópio.

Jornalista que sabia sujar os sapatos —no caso dele, finas botinas de pelica—, registrou o resultado da mudança: a gente desamparada que começou a subir os morros e improvisar moradias. Sua reportagem sobre os habitantes do morro de Santo Antônio é provavelmente a primeira descrição de uma favela: “Mais de 500 casas e cerca de 1.500 pessoas abrigadas lá em cima”.

Em contraponto aos que se escandalizam com o Carnaval, pressentiu que ali estava a parte mais escancarada do espírito carioca. Pereira Passos proibiu o entrudo, festejo antigo, e queria proibir a festa da Glória.

Segundo João do Rio, a explosão dos cordões (Destemidos do Inferno, Amantes do Sereno, Prazer da Pedra Encantada) socorreu a alegria popular, apesar da tentativa de decência. “O Bebê de Tarlatana Rosa”, que aparece em nove entre dez antologias dos melhores contos da literatura brasileira, é uma história de fundo carnavalesco.

Ao contrário de Lima Barreto, que vivia encharcado de nacionalismo, ele compreendeu a grande novidade que era o futebol —no início uma mera pelada entre ingleses—, dizendo que, com a construção do estádio das Laranjeiras, em 1905, o esporte já absorvia todas as atenções da sociedade.

Precursor dos cronistas da fase máxima do gênero —os anos 1950 e 1960, com Rubem Braga, Paulo Mendes Campos, Fernando Sabino, Carlinhos Oliveira, Elsie Lessa—, indicou a eles o caminho que a cidade e as modas iriam escolher, passando do centro à zona sul.

Em 1915, Ipanema era um areal no fim do mundo quando João do Rio e a dançarina americana Isadora Duncan aprontavam por lá —com La Duncan dançando nua “na paisagem lunar” das pedras do Arpoador.

Dois anos depois, João do Rio se mudou para uma casa na avenida Vieira Souto e foi pioneiro de uma atividade clássica: a caminhada na orla. Andava todos os dias de manhã e arrumava tempo para bater papo com os poucos moradores. Gordo e com saúde frágil, não pegava jacaré na praia, mas quase.

Vítima de racismo e homofobia, abordou um tema que ainda hoje sacode o país: o feminismo. Escreveu no jornal A Notícia: “Porque sou feminista, porque de ploro a esposa infeliz, porque faço questão dos direitos da mulher e do amor livre”. O texto é de 1908.