DANILO CYMROT
KINGSTON, JAMAICA (FOLHAPRESS) – Eis um lugar cheio de contradições e, em certos aspectos, muito parecido com o Brasil. Trata-se do “país mais perigoso do mundo”, segundo Escritório das Nações Unidas sobre Drogas e Crime -estudo de 2022 apontou uma taxa de homicídios quase dez vezes superior à média mundial.
A maconha só foi descriminalizada em 2015, e o país é um dos nove da América que criminalizam a homossexualidade. No entanto, conhecida principalmente por sua música, atletas e atrações naturais paradisíacas, a Jamaica é comumente associada à alegria, à diversão e a outros signos positivos, tendo no imaginário social mundial uma boa imagem e, portanto, bom soft power.
Ao chegar ao serviço de emigração do aeroporto de Kingston, já percebi, logo de cara, que estava em um país único, em muitos sentidos. A funcionária fez a mim perguntas padrão, como o motivo da minha viagem, onde me hospedaria e quanto tempo ficaria na ilha, solicitando que eu mostrasse a passagem de volta.
Respondi que escolhi visitar a Jamaica por causa da música, e a funcionária então pediu para que eu dissesse de qual música jamaicana eu gostava, com o objetivo de verificar se eu dizia a verdade. Respondi com nomes de cantores de reggae, mas não foi suficiente. Ainda desconfiada, a funcionária pediu então para eu citar nomes de músicas de Bob Marley.
Já tendo sido interrogado em outros aeroportos, em experiências bastante desagradáveis, confesso que desta vez não só não fiquei nervoso como achei divertido o teste de boas-vindas. Não bastasse o conhecimento das músicas de Bob Marley ter sido usado como critério positivo de idoneidade em um procedimento estatal burocrático-policial, na praça principal de Montego Bay testemunhei, dias depois, uma cena igualmente inusitada.
Em uma ação de cidadania, que incluía barracas com materiais de conscientização sobre o HIV, violência doméstica e dengue, a banda da polícia, devidamente fardada, tocava reggae, um gênero musical conhecido por criticar o sistema e a opressão. O reggae não apenas foi institucionalizado pelo Estado como também movimenta a indústria do turismo jamaicana.
Principal nome do gênero e jamaicano mais famoso do mundo, Bob Marley morou em mais de uma casa na ilha e pelo menos três delas podem ser visitadas. A primeira dessas casas fica situada no povoado de Nine Mile, a 88 km de Kingston. Nessa casa podemos ver os quartos onde Marley nasceu e onde passou seus primeiros anos de infância. É lá também que está seu mausoléu.
A segunda casa fica em Trench Town, onde Bob Marley viveu a partir dos 10 anos de idade e onde formou, ao lado de Peter Tosh e Bunny Wailer, o conjunto The Wailers. Trench Town, citada, entre outras, na icônica “No Woman No Cry”, de Vincent Ford, e em “Alagados”, dos Paralamas do Sucesso, é um bairro de classe baixa de Kingston, que abriga conjuntos habitacionais em que famílias muitas vezes viviam apertadas em pequenos cômodos e dividiam áreas comuns, como cozinha, banheiro e um pátio central.
O conjunto onde Marley viveu foi transformado no museu Trench Town Culture Yard. Em seu quarto, vê-se a “single bed” e o “roof” divididos com sua então namorada, Rita Marley, e citados na romântica “Is This Love”. O roteiro completo inclui um passeio pelo bairro, onde viveram outros ícones da música jamaicana.
A terceira casa, provavelmente a mais visitada, fica em Hope Road, uma zona nobre de Kingston, onde Bob Marley viveu seus últimos seis anos de vida, já como um astro internacional consagrado.
Foi nesta casa, antes pertencente a Chris Blackwell, dono da gravadora Island Records, que em 1976 Bob Marley sofreu um atentado em meio a uma onda de intensa violência política entre as milícias do então primeiro-ministro Michael Manley e do líder da oposição, Edward Seaga, episódio retratado tanto no filme “Bob Marley: One Love” quanto no documentário da Netflix “ReMastered: Who Shot the Sheriff?”. As marcas de tiros ainda podem ser vistas na parede do quarto.
Foi nessa casa que clássicos foram compostos, como “Three Little Birds”. A casa tem um estúdio e, no anexo, uma loja de maconha de grife. A visita pode ser combinada ainda com a ida ao estúdio Tuff Gong, de propriedade de Marley, em outro bairro da capital.
Outro local de Kingston importante na história do músico é o Estádio Nacional, onde em 1978 aconteceu o “One Love Peace Concert”, justamente com o objetivo de pacificar as relações entre os partidários de Manley e de Seaga. Sob a mediação de Marley, os líderes políticos subiram ao palco e deram as mãos. Ao lado do estádio está localizada a Arena Nacional, onde ocorreu o velório do cantor, em 1981. Em frente a ambos, paira sua estátua.
Muito menos celebrado do que Marley, Peter Tosh também tem seu pequeno museu em Kingston -talvez a principal relíquia exposta seja sua guitarra-metralhadora. Apesar de não ser uma atração turística, interessados podem passar em frente à casa onde ele foi assassinado, em 1987, na Plymouth avenue. Já seu túmulo pode ser visitado em Belmont, a 172 km de Kingston.
Para quem se interessa também pelo turismo cinematográfico, a pequena ilha de Lime Cay, próxima ao aeroporto de Kingston, foi cenário do clássico jamaicano “The Harder They Come”, que catapultou o reggae e Jimmy Cliff ao estrelato mundial.
Por fim, na zona portuária, fica o Jamaica Music Museum, que exibe instrumentos doados por integrantes das bandas Skatalites e Jolly Boys, lembrando que a música jamaicana é muito mais do que reggae. Herbie Miller, curador, é fã de música brasileira, principalmente de Maria Bethânia.